Ela não precisou de ‘cola’, nem de discursos ensaiados. Bastou uma voz forte e a verdade. Nesta sexta-feira (6), durante uma palestra sobre feminicídio realizada no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), em São Vicente, a GCM Marcela - coordenadora do programa Guardiã Maria da Penha, que presta suporte a mulheres vítimas de violência - arrancou aplausos, lágrimas e, principalmente, despertou a reflexão sobre a urgência da oferta de redes de acolhimento e proteção no Brasil. O evento também contou com a participação de representantes do Conselho Tutelar e da Supervisão de Políticas para Mulheres da Secretaria de Direitos Humanos (Sedhc).
Ao lado de outras mulheres, Marcela apresentou o ciclo da violência, tensão, agressão, arrependimento e reconciliação, revelando como muitas vítimas se sentem culpadas ou envergonhadas, e, por isso, demoram (ou desistem) de denunciar. “A mulher muitas vezes não percebe que está em um ciclo de violência. Não é só o papel de proteger. É o papel de ouvir, de orientar, de caminhar junto. Porque quando uma mulher está determinada, ninguém a derruba”, pontua.
Responsável pelo Guardiã Maria da Penha, iniciativa da Guarda Civil Municipal (GCM), Marcela explicou que o programa começa com o registro do boletim de ocorrência e o pedido da medida protetiva. O documento é encaminhado pelo Ministério Público à Guarda, que entra em contato com a vítima para oferecer acompanhamento. “Nem toda mulher está pronta para aceitar. Às vezes ela volta atrás. E aí nosso trabalho é tentar convencê-la a seguir em frente. Porque coragem não é ausência de medo. É seguir mesmo com ele”.
A guarda municipal ainda ressaltou a importância da representatividade feminina na segurança pública, afirmando que mulheres vítimas de violência muitas vezes se sentem mais confortáveis ao serem atendidas por outras mulheres. “A ideia é proporcionar atendimento especializado, com ambientes seguros e humanizados”.
Dona de casa e uma das mulheres assistidas pelo Creas, Priscila Caruso participou da palestra e destacou a importância do acolhimento recebido da equipe da GCM:
“Eu fui pedir ajuda num momento em que tudo estava desmoronando. A Marcela estava saindo do expediente, mas mesmo assim parou, marcou um horário e me recebeu com acolhimento e empatia. Me levou pra uma sala, escutou todo o meu sofrimento e me aconselhou. Eu estava totalmente vulnerável, sem renda, com uma filha pequena, abandonada pelo meu companheiro… e ela ainda me ajudou com uma cesta básica. Foi ali que descobri meus direitos, como o auxílio-aluguel, que nem sabia que existia. A Marcela virou uma chave na minha vida. Acolhimento como o dela salva. Ela fez com que eu me sentisse segura. Fez eu me sentir humana”.
Segundo dados apresentados na palestra, o Brasil ocupa a 7ª posição entre 84 países com maior número de feminicídios. Em São Vicente, nove mulheres estão atualmente sendo acompanhadas pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), enquanto o Guardiã Maria da Penha atua diariamente na prevenção e enfrentamento à violência doméstica.
Também foram abordados os tipos de violência previstos na Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006), mostrando que o feminicídio é o desfecho mais extremo de uma série de abusos muitas vezes invisíveis. São eles:
* Violência física: agressões que ferem a integridade corporal da mulher, como tapas, empurrões, socos e espancamentos.
* Violência psicológica: manipulação emocional, ameaças, humilhações, chantagens e isolamento social.
* Violência sexual: qualquer prática sexual forçada, inclusive no contexto conjugal.
* Violência patrimonial: retenção, destruição ou controle dos bens e recursos financeiros da vítima.
* Violência moral: ofensas, calúnias, difamações ou exposições públicas que atingem a honra da mulher.
* Violência vicária (recente na legislação): quando o agressor atinge filhos, familiares ou até animais de estimação para ferir emocionalmente a mulher.
“A violência não começa com agressão física. Começa com o controle e evoluindo. E aí a gente entra num ciclo: tensão, agressão, arrependimento, e de novo… Até que o fim pode ser a morte”, alertou a guarda de São Vicente.
Ao final, Marcela reforçou os canais de ajuda, como a Guardiã Maria da Penha 153, Central de Atendimento à Mulher 180 e o 190 da Polícia Militar, além da possibilidade de atendimento presencial na base da Guarda Municipal.
“A mulher que tem força para denunciar nunca estará sozinha”, finalizou, em um tom que misturava dor e esperança. Porque, como ela mesma provou, ser sobrevivente é só o começo de uma nova luta, e hoje, Marcela luta por todas.