Transformar perdas em propósito. É assim que começa a história de Helga Monteiro, ativista ambiental que morou mais de 30 anos em São Vicente, idealizadora do projeto Tampinhas do Futuro, localizado atualmente no bairro Catiapoã, e autora do livro infantil A Menina dos Reciclados. Sua jornada na pauta ambiental nasce justamente de um momento de dor: no fim da pandemia, a presidente da ONG onde atuava como voluntária faleceu, e seu pai sofreu um AVC que resultou na perda parcial da visão. Em meio ao luto e à preocupação, Helga começou a observar, com mais profundidade, o aumento alarmante do consumo de plásticos de uso único, intensificado pelo isolamento. Ao mesmo tempo, percebeu que o projeto social que desenvolviam — uma oficina de costura para mulheres em vulnerabilidade, incluindo vítimas de violência doméstica — corria o risco de ser interrompido. A necessidade de transformar dor em ação fez nascer o Tampinhas do Futuro, inicialmente voltado à arrecadação de tampas plásticas e hoje ampliado para lacres de alumínio.
Nesse processo, Helga mergulhou não apenas na prática da reciclagem, mas na compreensão profunda do papel dos recicladores, profissionais que sustentam a engrenagem da economia circular. E, neste 22 de novembro, Dia do Reciclador, ela faz questão de reforçar o quanto esse trabalho é indispensável: “O Brasil precisa avançar em estrutura, logística, políticas públicas e cultura, mas nada disso existe sem o catador, sem quem transforme resíduos em oportunidade. O reciclador é o elo que fecha o ciclo. Ele evita que materiais fiquem décadas em decomposição no aterro sanitário, abre portas para geração de renda, movimenta cooperativas e dá sentido à ideia de que lixo é recurso. Ainda assim, seu reconhecimento é baixo porque, culturalmente, seguimos enxergando o lixo como algo descartável, e não como uma cadeia de valor”, ressalta Helga.
Foi observando essa lacuna — e a dificuldade de levar o tema às crianças — que Helga criou o livro infantil A Menina dos Reciclados, inspirado diretamente no trabalho do Tampinhas do Futuro. A obra nasceu da necessidade de ter uma ferramenta acessível para as gincanas ambientais nas escolas e para aproximar o tema da primeira infância, faixa etária que exige uma abordagem diferenciada. O livro apresenta, de forma lúdica, o universo da reciclagem e o poder de transformação da personagem Alice, uma menina que descobre que pode modificar sua cidade ao cuidar dos resíduos que produz. Em pouco tempo, o livro se tornou a ponte perfeita entre cultura, educação e sustentabilidade. As crianças associam a história a experiências reais: visitas a exposições, projetos escolares, brinquedos feitos com materiais reaproveitados. Elas compreendem o processo de transformação dos resíduos — da coleta à extrusão — e, encantadas, levam esse aprendizado para casa, influenciando diretamente a rotina das famílias. Para Helga, esse é o caminho mais eficaz para mudar comportamentos enraizados nos adultos que não tiveram acesso à educação ambiental na escola.
Porém, nem tudo são flores. O livro também nasceu enfrentando desafios. Publicar uma obra bilíngue, com temática ambiental e sem grandes patrocínios, exigiu fôlego e persistência. A maior barreira, segundo Helga, é conquistar o interesse dos próprios responsáveis adultos, que muitas vezes veem o tema como secundário ou cansativo. “Quando essa barreira é quebrada e o livro chega às mãos de uma criança, a transformação acontece: o encantamento se espalha, e o adulto passa a perceber que reciclar é um gesto simples, possível e necessário. A Menina dos Reciclados reforça que sustentabilidade não é sobre radicalismo, mas sobre pequenos hábitos diários: separar o orgânico do reciclável, higienizar embalagens, descartar corretamente lâmpadas e tintas, consumir menos e melhor”, conta com orgulho.
Para o futuro, Helga pretende ampliar o alcance do livro e do projeto. Em 2026, quer dobrar o número de escolas parceiras, fortalecer a presença em creches, bibliotecas e redes municipais, buscar apoiadores e expandir para outras cidades e estados, fazendo da literatura uma ferramenta pedagógica contínua. Seu objetivo é claro: que a história de Alice ajude a formar uma geração que cresça entendendo seu papel no planeta, tornando automática a prática da sustentabilidade — “tão natural quanto escovar os dentes ou arrumar a cama”.
“Hoje, a iniciativa da ‘menina dos reciclados’ e a própria reciclagem revelam algo maior do que um gesto ambiental: revelam o propósito de existir, de unir pessoas para proteger o que sustenta a vida — das estações aos alimentos, das praias aos pequenos refúgios que ainda resistem. Não se trata de superioridade, mas de escolher agir, enxergando no lixo um recurso e na desigualdade uma oportunidade de transformação. É assim que projetos como o ‘Tampinhas do Futuro’ se tornam pontes contra a criminalidade, contra o abandono e contra tudo o que insistimos em lamentar. A mensagem é simples e profunda: continuar, transformar, agir. Converter desperdício em futuro, desalento em esperança, reclamação em atitude, porque a mudança real não começa com um grito, mas com a coragem de fazer o que precisa ser feito”, reforça Helga.
Neste Dia do Reciclador, Helga dedica seu trabalho a esses profissionais que, muitas vezes invisíveis, sustentam a limpeza das cidades e a saúde ambiental do país. Para ela, reciclar não é apenas um ato técnico: é um ato humano, social e transformador. E seu livro é a semente que planta essa consciência desde cedo, mostrando que todos — crianças, adultos, comunidades, recicladores — podem transformar o mundo. Basta começar por uma tampinha.
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Por Luis Gomes